16 de set. de 2017

LENDAS GAÚCHAS

O Negrinho do Pastoreio (Simões Lopes Neto)

1


     Naquele tempo os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas: somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos...

     Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias doblas e mais muita prataria; porém era muito cauila e muito mau, muito.

     Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão as sombras de seus umbus só abrigavam os cachorros; e ninguém de fora bebia água de suas cacimbas.

     Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo... E tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era o seu próprio couro que ele estava lonqueando...

     Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam somente o - Negrinho.

     A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem. 

    Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o judiava e se ria.

     Um dia, depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro.

     No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande.

     Entre os dois parelheiros a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem lançado cada um dos animais. Do baio era fama que, quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não se lhe viam as patas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais aguente, e que desde a largada ele a ser como um laço que se arrebenta...

     As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.

     - Pelo baio! Luz e doble! ...

     - Pelo mouro! Doble e luz! ...

     Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta...

 2

      - Empate! Empate! Gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passa a parelha veloz, compassada como uma colhera.

     - Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! gemia o Negrinho. Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! Hip! hip! hip!

     E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.

     - Se o corta-vento ganhar é só para os pobres! Retrucava o outro corredor. Hip! hip!

     E cerrava as esporas no mouro. Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera.

     Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinha aos tirões... mas sempre juntos, sempre emparelhados.

     E as duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de supetão, pôs-se em pé e fez uma cara-volta, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pelo, agarrou-se como um ginetaço.

     - Foi mau jogo! Gritava o estancieiro.

     - Mau jogo! Secundavam os outros da sua parceria.

     A gauchada estava dividida no julgamento da carreira; mais de um torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé... Mas o juiz, que era um velho do tempo da Guerra de Sepé Tiaraju, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanando a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem:

     - Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro. Quem perdeu que pague. Eu perdi cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei!

     Não havia o que alegar. despeitado e furioso, o estancieiro pagou a parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro sobre o poncho do seu contrário, estendido no chão.

     E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta e baguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras seguiram com os changueiritos que havia.

     O estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando, pensando, calado, todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado a meia espalda... O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.

     E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe uma surra de relho.

     Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha falou assim:

     - Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!

     O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.

     Veio o Sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho varado de fome e já sem força nas mãos, enleou a soga num pulso e deitou-se encostado a um cupim.

     Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, e todas olhavam-no com olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem barulho nas asas.

     O Negrinho tremia, de medo... porém de repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.

     E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias; a estrela-d'alva subiu... Então vieram os guaraxains ladrões e farejaram o Negrinho e cortaram a guasca da soga. O baio sentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.

     O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dando berros de escárnio.

     Os galos estavam cantando, mas nem o céu nem as barras do dia se enxergava: era a cerração que tapava tudo.

     E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.

    O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não estavam. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe uma surra de relho.

     E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear o perdido. Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensou na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou o coto de vela acesso em frente da imagem e saiu para o campo. 

     Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros e nas restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no chão e de cada pingo nascia uma nova luz, e já eram tantas que clareavam tudo. O gado ficou deitado, os touros não escarvaram a terra e as manadas xucras não dispararam... quando os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalos relincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou por diante a tropilha, até a coxilha que o senhor lhe marcara. 

     E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu...

     Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo instante apagaram-se as luzes todas;e sonhando com a Virgem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém pior do que os bichos maus, ao clarear o dia veio o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparando campo afora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas. 

     O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seu pai que os cavalos não estavam lá...

     E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou...

     O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe até ele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo... O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora Nossa, deu um suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu...

     E como já era de noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos... E assanhou bem as formigas; e quando elas raivosas, cobriram todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-lo, é que então ele se foi embora, sem olhar para trás.

     Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil onças de ouro... e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...

     Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pássaros e a casca das frutas.

     Passou a noite de Deus e veio a manhã e o Sol encoberto.

     E três dias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.

     A peonada bateu o campo, porém, ninguém achou a tropilha e nem rastro.

     Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do corpo do escravo.

     Qual não foi o seu grande espanto, quando chegado perto viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda! ... O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto, a tropilha dos trinta tordilhos... e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.

     E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pelo e sem rédeas, no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.

     E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio.

     E não chorou, e nem se riu.

     Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro.

     Porém logo, de perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre  novo...

     E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinha pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia - da mesma hora - de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pelo, em um cavalo baio!

     Então, muitos acenderam velas e rezaram o Padre-nosso pela alma do judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma coisa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver.

     Todos os anos, durante três dias, o Negrinho desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se; e um aqui, outro lá, os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do Sol do terceiro dia, o baio relincha perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém, nem na culatra.

     Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas.

     O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm.

     Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo - Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi!

     Se ele não achar... ninguém mais.

Fonte imagem 1: https://www.xapuri.info

Lenda do Arroz

     Quando o Rio Grande do Sul nem existia no mapa, vinham de muito longe bandos de homens vestindo roupas de couro, empunhando espingardas,montados em mulas e fazendo muita confusão por onde passam.

     Eram os bandeirantes, que durante muito tempo estiveram por estas paragens, em busca de ouro, prata e gado e escravos.

     Ouro e prata, nunca acharam. O gado pastava livre pelas coxilhas. Era só vir, escolher e levar embora. Os escravos eram os índios que aqui viviam. Eram conduzidos em fila, amarrados pelas mãos, às centenas.

     Certa vez, houve um ataque a uma aldeia situada às margens do Rio Jacuí. Os arcos e flechas não foram suficientes contra os emboabas, e toda a tribo acabou perecendo.

     Sobrou só um curumim, chamado Tuti, que, assustado fugira pro mato.

(em construção)





     
















Fonte: Lendas Gaúchas , volume 1 de Zero Hora, 2000.


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