25 de jul. de 2018

PENSAMENTOS, REFLEXÕES... 2

1772. "Estória do Aparelho Azul-Pombinho
Minha bisavó - que Deus a tenha em bom lugar - 
inspirada no passado
sempre tinha o que contar.
Velhas tradições. Casos de assombração.
Costumes antigos. Usanças de outros tempos.
Cenas da escravidão.
Cronologia superada
onde havia banguês.
Mucamas e cadeirinhas.
Rodas e teares. ouro em profusão,
posto a secar em couro de boi.
Crioulinho vigiando de vara na mão
pra galinha não ciscar.
Romanceiro. Estórias avoengas...
Por sinal que uma delas embalou minha infância.

Era a estória de um aparelho de jantar
que tinha sido encomendado de Goiás
através de uma rede de correspondentes
como era de norma, naquele tempo.
Encomenda levada numa carta
em nobre estilo amistoso-comercial.
Bem notada. Fechada com obreia preta.

Carta que foi entregue de mão própria
ao correspondente na Corte,
que tinha morada e loja de ferragem
na Rua do Sabão.
O considerado lusitano - metódico e pontual -,
a passou para Lisboa.
Lisboa passou para Luanda.
Luanda para Macau.
Macau se entendeu com mercadores chineses.

E um fabricante-loiceiro,
artesão de Cantão,
laborou o prodígio (no dizer de minha bisavó).

Um aparelho de jantar - 92 peças.
Enorme. Pesado, lendário.
Pintado, estoriado, versejado,
de loiça azul-pombinho.
Encomenda de um senhor cônego
de Goiás
para o casamento de seu sobrinho e afilhado
com uma filha de minha bisavó.

O cônego-tio e padrinho
pelo visto, relatado,
fazia gosto naquele matrimônio.
E o aparelho era para as bodas contratadas.
Um carro de boi - 
15 juntas, 30 bois - 
bem fornido e rejuntado
para viagem longa,
partiu de Goiás, no século passado,
do meado, pouco mais.
Levava seis escravos escolhidos
e um feitor de confiança.
Mantimentos para a viagem.
E mais, oitavas de ouro,
disfarçadas no fundo de um berrante,
para os imprevistos da delonga.

E o antigo carro
por ano e meio quase
rodou, sulcou, cantou e levantou poeira
rechinando
por caminhos e atalhos,
vilas e cidades, campos, sarobais.
Atravessou rios em balsas.
Vadeou lameiros, tremedais.
Varou Goiás - fim de mundo.
Cortou o sertão de Minas.
O planalto de São Paulo.

Foi receber o aparelho e mais sedas e xailes da índia
em Caçapava - 
ponta dos trilhos da Dão Pedro Segundo - 
ali por volta de 1860 e tantos.
Durou essa viagem, ir e voltar,
dezesseis meses e vinte e dois dias.
- As bodas em suspenso.

Enquanto se esperava, escravas de dentro
fiavam na roda e urdiam no tear.
Mucamas compenetradas, mestreadas por rica-dona,
sentadas nas esteiras, nos estrados de costura,
desfiavam, bordavam, crivavam,
repolegavam
o bragal de minha avó.
Sinhazinha de catorze anos - fermosura.
Prendada. Faceira.
Muito certa na Doutrina.
Entendida do governo de uma casa
e analfabeta.
Diziam os antigos educadores:
"- Mulher saber ler e escrever não é virtude".

Afinal, muito esperado,
chegou a Goiás, sem novidades ou peça quebrada,
o aparelho encomendado
através de uma rede de correspondentes.
Embarcado num veleiro,
no porto de Macau.

As bodas marcadas
se fizeram com aparato.
Fartas comezainas.
Vinho de Espinho - Portugal - 
da parte do correspondente.
Aparelhos de loiça da China.
Faqueiros e salvas de prata.
Compoteiras e copos de cristal.
Na sobremesa, minha bisavó exultava...
Figurava uma pinha de iludição.

Toda ela de cartuchos de papel verde calandrado,
cheios de confeitos de ouro em filigrana.
Mimo aos convidados graduados:
Governador da Província.
Cônegos, Monsenhores, Padres-mestres,
Capitão-mor.
Brigadeiros. comendadores.
Juízes e Provedores.
Muita pompa e toda parentela.
Por amor e grandeza desse fasto
- casamento da sinhazinha Honória
com o sinhô-moço Joaquim Luís - 
dois velhos escravos, já pintando,
receberam chorando
suas cartas de alforria.

Ficou mais, assentado e prometido
em palavra de rei testemunhado,
que o crioulinho
que viesse ao mundo
com o primogênito do casal
seria forro sem tardança na pia batismal.

E se criaria em regalia
com o senhorzinho,
nata fosse ele, em hora e dia.

Um rebento do casal veio ao mundo
no fim de nove meses.
E na senzala do quintal
nascia de uma escrava
um crioulinho.
Conforme o prometido - libertado
alforriado 
na pia batismal.

(Na pia batismal, era, naquele tempo,
forma legal e usual de se alforriar um escravo.)
Toda essa estória
por via de um aparelho de loiça da China,
destinado a Goiás.
Laborado de um oleiro, loiceiro de Cantão.
Embarcado num veleiro
no porto de Macau.

Cartas com obreias.
Correspondentes antigos.
Cartuchos de confeiteiros de ouro.
Alforria de escravos.
Bodas de meu avô.
Bragal de minha avó.
Roda e tear, marafundas e repolegos.
Coisas do passado...
E - dizia minha bisavó - 
tudo se deu como o contado." Cora Coralina

1773. "A educação necessita tanto de formação técnica e científica, como de sonhos e utopias." Paulo Freire

1774. "Riqueza não é ter muito... riqueza é precisar de pouco."

1775. "Nada voltará a ser como antes, mas tudo pode ser melhor como nunca foi."

1776. "Não há espelho melhor que reflita o ser humano do que as suas próprias atitudes."

1777. "Discutir com uma pessoa que renunciou à lógica é como dar remédio a um homem morto." Thomas Paine

1778. "Se a grama do vizinho parece mais verde, talvez você esteja olhando demais para a dele, e esquecendo de regar a sua."

1779. "A inveja, a raiva e os insultos, quando não aceitos, continuam pertencendo a quem os carregava consigo."

1780. "Não importa o seu nível de educação, talento, riqueza ou popularidade. A maneira como você trata o outro diz tudo sobre você."

1781. "Perguntaram ao sábio o que é o perdão. Ele respondeu: é a fragrância que sai das flores quando são esmagadas."

1782. "Livros são sonhos que seguramos com as mãos." Neil Gaiman

1783. "Eletrônicos duram 10 anos. Livros, 5 séculos." Umberto Eco

1784. "De que são feitos os dias? De pequenos desejos, vagarosas saudades, silenciosas lembranças." Cecília Meireles

1785. "O que torna belo o deserto é que ele esconde um poço em algum lugar..." Exupéry

1786. "Frei Germano
Quando eu era menina
bem pequena,
pela minha porta,
pela minha rua,
pela minha ponte,
via passar
os frades dominicanos.

Túnica branca.
Larga correia na cintura
prendendo um rosário
de contas grossas.
Hábito solto.
Cruz ao peito.
Sapatões pesados.
Um chapéu grande, preto,
de abas presas, reviradas.
Às vezes, também,
conforme o tempo,
anacrônico, enorme,
um guarda-chuva
amarelado, abarracado.
Muito austero.
Muito ascetas.
Muito graves.

Corria a lhes pedir a bênção,
ganhar santinho.
Frei Henrique.
Frei Constâncio.
Frei Manuel.
Frei Germano.
E quantos outros...
Já nem lembro os nomes.

Vinham de terras cultas,
distantes.
Falavam nossa língua
num sotaque estrangeirado,
com muitos erres.

Preocupavam-se demais
com os pecadores.
Queriam salvar todas as almas.
Exortavam sobre o inferno.
Contavam do purgatório.
Exaltando as maravilhas do Céu.

Frei Germano...
Quanto respeito, meu Deus!
Durezas de ascetismo.

Estatura invulgar de sacerdote.
Tão severo...
Tão alto...
descarnado.
Era a austeridade retratada,
fidelíssima,
vestindo sua imensa caridade.

Diziam até que trazia cilício
sobre a carne espezinhada.
Rigoroso nas regras de sua Ordem,
renunciava até mesmo ao consentido.
Desmaiava nos antigos jejuns,
carregando sobre si
a cruz pesada
dos pecados
da cidade.

Envergadura de atleta da Fé.
Embasamento,
Sustentáculo
da Ordem de São Domingos.
Grande confessor.
Grande penitente.
Dignificou a Pátria onde nasceu.
Dignificou a Terra onde morreu.

Um dia - inda me lembro:
Apareceu sem avisar
na escolinha laica
da Mestra Silvina.
Minha escolinha primária...
Quanta saudade!
Muito manso,
muito humilde,
se fazendo pequenino,
propôs à Mestra
em dia certo da semana,
ensinar a doutrina
à meninada.

Cinquenta anos decorridos,
guardo na lembrança
sua figura austera,
retratada,
de velho santo.
E as lições aprendidas
do pequeno catecismo.
Como prêmio de aplicação
conservo daquele tempo,
recebido de suas mãos,
uma antiga História Sagrada
e uns santinhos que me têm valido
na aflição.

E sei até hoje
se me perguntarem
os "Novíssimos do Homem"
que nenhum leitor,
católico praticante,
dirá ao certo
sem rever de novo o catecismo.

Frei Germano...
No longo caminho de pedras, de quedas,
de ascensão, da vida percorrida,
nunca para mim
seu vulto
se perdeu no esquecimento.
Nunca.
E eu era apenas
guria pequenina
da escolinha primária
da Mestra Silvina...
E até hoje, guardião de minha fé,
vai me levando pela vida
Frei Germano." Cora Coralina

1787. "Toda crise possui 3 elementos: uma solução, um prazo de validade e uma lição para a sua vida."

1788. "Quando a estrada fica interrompida, o desvio pode ser interessante." Martha Medeiros

1789. "Há momentos em que você precisa escolher entre virar a página ou fechar o livro."

1790. "O abraço é o cobertor que aquece o coração quando faz frio dentro da gente."

1791. "Vamos em frente. Quem olha para traz, tropeça."

1792. "Delicadeza nas palavras gera confiança. Delicadeza no pensamento gera profundidade. Delicadeza no doar-se gera amor." Lao Tsé

1793. "É na delicadeza dos gestos que o amor é revelado." Marcelle M.

1794. "Tente encarar a vida como se fosse um livro, como se cada dia fosse uma página diferente."

1795. "Ler não dá sono. Ler dá sonhos."

1796. "Evoluir é reconhecer os próprios erros. Não para consertá-los, mas  para não repeti-los."

1797. "Não te direi as razões que tens para me amar, pois elas não existem. A razão do amor é o amor." Exupéry

1798. "A Escola da Mestra Silvina
Minha escola primária...
Escola antiga de antiga mestra.
Repartida em dois períodos
para a mesma meninada,
das 8 às 11, da 1 às 4.
Nem recreio, nem exames.
Nem notas, nem férias.
Sem cânticos, sem merenda...
Digo mal - sempre havia
distribuídos
alguns bolos de palmatória...
A granel?
Não, que a Mestra
era boa, velha, cansada, aposentada.
Tinha já ensinado a uma geração
antes da minha.

A gente chegava "- Bença, Mestra".
Sentava em bancos compridos,
escorridos, sem encosto.
Lia alto lições de rotina:
o velho abecedário,
lição salteada.
Aprendia a soletrar.

Vinham depois:
Primeiro, segundo,
terceiro e quarto livros
do erudito pedagogo
Abílio César Borges - 
Barão de Macaúbas.
e as máximas sapientes
do Marquês de Maricá.

Não se usava quadro-negro.
As contas se faziam
em pequenas lousas
individuais.

Não havia chamada
e sim o ritual
de entradas, compassadas.
"- Bença, Mestra..."

Banco dos meninos.
Banco das meninas.
Tudo muito sério.
Não se brincava.
Muito respeito.

Leitura alta.
Soletrava-se.
Cobria-se o debuxo.
Dava-se a lição.
Tinha dia certo de argumento
com a palmatória pedagógica
em cena.
Cantava-se em coro a velha tabuada.

Velhos colegas daquele tempo...
Onde andam vocês?

A casa da escola inda é a mesma.
- Quanta saudade quando passo ali!
Rua Direita, nº 13.
Porta da rua pesada,
escorada com a mesma pedra
da nossa infância.

Porta do meio, sempre fechada.
Corredor de lajes
e um cheirinho de rabugem
dos cachorros de Samélia.
Mesorra escura
toda manchada de tinta
das escritas.
Altos na parede, dois retratos:
Deodoro, Floriano.

Num prego de forja, saliente na parede,
estirava-se a palmatória.
Porta de dentro abrindo
numa alcova escura.
Um velhíssimo armário.
Canastras tacheadas.
Um pote d'água.
Um prato de ferro.
Uma velha caneca, coletiva,
enferrujada.
Minha escola da Mestra Silvina...
Silvina Ermelinda Xavier de Brito.
Era todo o nome dela.

Velhos colegas daquele tempo,
onde andam vocês?
Sempre que passo pela casa
me parece ver a Mestra,
nas rótulas.
Mentalmente beijo-lhe a mão.
"- Bença, Mestra."
E faço a chamada de saudade
dos colegas:
Juca Albernaz, Antônio,
João de Araújo, Rufo.
Apulcro de Alencastro,
Vítor de Carvalho Ramos.
Hugo da Tropas e Boiadas.
Benjamim Vieira.
Antônio Rizzo.
Leão Caiado, Orestes de Carvalho.
Natanael Lafaiete Póvoa.
Marica. Albertina Camargo.
Breno - "Escuto e tua voz vai
se apagando com um dolente ciciar
de prece."
Alberico, Plínio e Dante Camargo.
Guigui e Minguito
de Totó dos Anjos.
Zoilo Remígio.
Zelma Abrantes.
Joana e Mariquinha Milamexa.
Marica. Albertina Camargo.
Zu, Maria Djanira, Adília.
Genoveva, Amintas e Teomília.
Alcides e Magnólia Craveiro.
Pequetita e Argentina Remígio.
Olímpia e Clotilde de Bastos.
Luisita e Fani.
Nicoleta e Olga Bonsolhos.
Laura Nunes.

Adélia Azeredo.
Minha irmã Helena.
(Eu era Aninha.)
Velhos colegas daquele tempo.
Quantos de vocês respondem
esta chamada de saudades
e se lembram da velha escola?

E a Mestra?...
Está no Céu.
Tem nas mãos um grande livro de ouro
e ensina a soletrar
aos anjos." Cora Coralina

1799. "A melhor idade de uma mulher é quando ela deixa de completar anos e começa a completar sonhos."

1800. "Estar triste faz parte de ser feliz."

1801. "Cada dia ensina algo ao dia seguinte."

1802. "O abraço é um laço dado por fora que desata nó por dentro."

1803. "Para florescer é preciso regar. vale para flores, amigos e amores."

1804. "O sorriso é o silêncio mais bonito que existe."

1805. "Ser amável é mais importante do que ter razão. às vezes o que a gente precisa não é uma mente brilhante que fale, e sim um coração especial que escute."

1806. "Nunca ninguém está satisfeito com sua situação."  

1807. "A infância é o tempo de maior criatividade na vida de um ser humano." J. Piaget

1808. "Ler é ganhar asas para o mundo."

1809. "Educar não é cortar asas, mas sim orientar o voo." Aisha

1810. "O exercício do silêncio é tão importante quanto a prática da palavra." William James

1811. "Pessoas certas não existem. Somos todos errados procurando alguém que aceite nossas imperfeições."

1812. "São os passos que fazem os caminhos." Mário Quintana

1813. "Relaxe! Nada está sob controle."

1814. "É melhor ser rei do teu silêncio do que escravo de tuas palavras." William Shakespeare

1815. "Dois remédios curam qualquer mal: o silêncio e o tempo!"

1816. "Ler é uma aventura só sua."

1817. "Viajar é mudar a roupa da alma."

1818. "Voa sem medo. Os ventos contrários fortalecem o poder de suas asas."

1819. "Que você sinta mais do que entenda, porque as melhores coisas não tem explicação."

1820. "Educar é semear com sabedoria e colher com paciência." A. Cury

1821. "Amizade nunca foi questão de presença física. Porque amigo não precisa estar; amigo precisa ser."

1822. "Confiança é um tecido delicado que não aceita remendos."

1823. "Você é livre p/ fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências." Pablo Neruda

1824. "Cada um é herdeiro de si mesmo."

1825. "É a vida sem sal que te enferruja."

1826. "Quando a sua brincadeirinha constrange o outro, não é brincadeira, é desrespeito."

1827. "Se faltar coragem, que lhe sobre loucura!"

2828. "Quer saber o sentido da vida? Pra frente!"

2829. "Difícil não é conviver com as pessoas; difícil é compreendê-las." José Saramago

2830. "Sozinhas somos pétalas, unidas somos rosas."

2831. "A felicidade não está na estrada que leva a algum lugar. A felicidade é a própria estrada." Bob Dylan

2832. "A mais bela declaração de amor é dita no silêncio de um olhar."

2833. "O riso é eterno, a imaginação não tem idade e os sonhos são p/ sempre."

2834. "Agradeça sempre! A gratidão abre as portas do coração." Içami Tiba

2835. "Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão p/ amar senão amar." Fernando Pessoa

2836. "Cultura nunca é o que entra pelos olhos e ouvidos, mas o que modifica o jeito de olhar e ouvir."

2837. "Em noites de tempestade, as árvores rígidas são as primeiras a quebrar, enquanto as árvores flexíveis se curvam e deixam o vento passar."

2838. "Saudade é o preço que se paga por viver momentos inesquecíveis."

2839. "Pensamentos felizes fazem a gente voar."

2840. "Reaja com inteligência mesmo quando for tratado com ignorância." Lao Tsé

2841. "A criatividade é a inteligência se divertindo."

2842. "O mais valioso dos bens, depois da saúde, é a paz interior." F. Rochefoucald

2843. "A saudade é um vazio cheio de tudo..."

2844. "Às vezes pequenos passos te levam mais longe do que os grandes."

2845. "O que ninguém viveu ninguém rouba." Gabriel G. Márquez

2846. "A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta." Fernando Pessoa

2847. "A atitude é uma coisa pequena que faz uma grande diferença."

2848. " Antiguidades
Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção.
Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.

Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.

Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
e que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.

Era aquilo uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito"
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus!...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades...

Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
 de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita - alta, magrinha.
Lili - baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
"- Lili é a bengala de D. Benedita".
Mestra Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio. 

D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.

Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando "causos" infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.

E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim - 
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé." Cora Coralina

2849. "Cada um dá o que tem no coração, e cada um recebe com o coração que tem." Oscar Wilde

2850. "Se puderes olhar vê. Se puderes ver, repara."

2851. "O dinheiro faz homens ricos, o conhecimento faz homens sábios, e a humildade faz grandes homens." Gandhi

2852. "Esqueçamos com generosidade aqueles que não podem nos amar." Neruda

2853. "Uma grama de ação valem ais do que uma tonelada de teoria."

2854. "Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro." José Saramago

2855. "Ah, o tempo... só ele tem este traquejo: desmascarar as aparências, revelar mentiras, e exibir o caráter."

2856. "Beleza e atitude podem abrir portas, mas é a gentileza que mantém as portas abertas."

2857. "Velho Sobrado
Um montão disforme. Taipas e pedras,
abraçadas a grossas aroeiras,
toscamente esquadriadas.
Folhas de janelas.
Pedaços de batentes.
Almofadados de portas.
Vidraças estilhaçadas.
Ferragens retorcidas.

Abandono. Silêncio. Desordem.
Ausência, sobretudo.
O avanço vegetal acoberta o quadro.
Carrapateiras cacheadas.
São-caetano com seu verde planejamento,
pendurado de frutinhas ouro-rosa.
Uma bucha de cordoalha enfolhada,
berrante de flores amarelas
cingindo tudo.
Dá guarda, perfilado, um pé de mamão-macho.
No alto, instala-se, dominadora,
uma jovem gameleira, dona do futuro.
Cortina vulgar de decência urbana
defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado
- um muro.

Fechado. Largado.
O velho sobrado colonial
de cinco sacadas, 
de ferro forjado,
cede.

Bem que podia ser conservado,
bem que devia ser retocado,
tão alto, tão nobre-senhorial.
O sobradão dos Vieiras
cai aos pedaços,
abandonado.
Parede hoje. Parede amanhã.
Caliça, telhas e pedras
se amontoando com estrondo.
Famílias alarmadas se mudando.
Assustados - passantes e vizinhos.
Aos poucos, a "fortaleza" desabando.

Quem se lembra?
Quem se esquece?

Padre Vicente José Vieira.
D. Irena Manso Serradourada.

D. Virgínia Vieira
- grande dama de outros tempos.
Flor de distinção e nobreza
na heráldica da cidade.
Benjamim Vieira,
Rodolfo Luz Vieira,
Ludugero,
Ângela,
Débora, Maria...
tão distante a gente do sobrado...

Bailes e saraus antigos.
Cortesia. Sociedade goiana.
Senhoras e cavalheiros...
- tão desusados...

O Passado...

A escadaria de patamares
vai subindo... subindo...
Portas no alto.
À direita. À esquerda.
Se abrindo, familiares.

Salas. Antigos canapés.
Cadeiras em ordem.
Pelas paredes forradas de papel,
desenho de querubins, segurando
cornucópia e laços.
Retratos de antepassados,
solenes, empertigados.
Gente de dantes.

Grandes espelhos de cristal,
emoldurados de veludo negro.
Velhas credências torneadas
sustentando
jarrões pesados.
Antigas flores
de que ninguém mais fala!
Rosa cheirosa de Alexandria.
Sempre-viva. Cravinas.
Damas-entre-verdes.
Jasmim-do-cabo. Resedá.
um aroma esquecido
- manjerona.

O Passado...

O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
"Clube Literário Goiano."
Rosa Godinho.

Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.
Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando ideias geniais.

Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.

D. Virgínia, Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.

O Passado...

Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.

Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
- Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do Passado." Cora Coralina

2858. "As noites mais escuras produzem as estrelas mais brilhantes."

2859. "O homem só envelhece quando os lamentos substituem seus sonhos."

2860. "Cuide se seus achados e esqueça os seus perdidos."

2861. "Generosidade é o reflexo do coração."

2862. "Se vamos ter rugas que seja de tanto rir."

2863. "Enquanto o bem existir, o mal tem cura."

2864. "Existem 3 remédios para curar maus momentos: o silêncio, o tempo e a música."

2865. Becos de Goiás
Beco da minha terra...
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de Sol que ao meio-dia desce, fugidia,
e semeia polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha,
jogada no teu monturo.

Amo a prantina silenciosa do teu fio de água,
descendo de quintais escusos
sem pressa,
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.

Amo a avenca delicada que renasce
na frincha de teus muros empenados,
e a plantinha desvalida, de caule mole
que se defende, viceja e floresce
no agasalho de tua sombra úmida e calada.

Amo esses burros de lenha
que passam pelos becos antigos. Burrinhos dos morros,
secos, lanzudos, mal zelados, cansados, pisados.
Arrochados na sua carga, sabidos, procurando a sombra,
no range-range das cangalhas.

E aquele menino, lenheiro ele, salvo seja.
Sem infância, sem idade.
Franzino, maltrapilho,
pequeno para ser homem,
forte para ser criança.
Ser indefeso, indefinido, que só se vê na minha cidade.

Amo e canto com ternura
todo o errado da minha terra.

Becos da minha terra, 
discriminados e humildes,
lembrando passadas eras...

Beco do Cisco.
Beco do Cotovelo.
Beco do Antônio Gomes.
Beco das Taquaras.
Beco do Seminário.
Bequinho da Escola.
Beco do Ouro Fino.
Beco da Cachoeira Grande.
Beco da Calabrote.
Beco do Mingu.
Beco da Vila Rica.

Conto a estória dos becos,
dos becos da minha terra,
suspeitos... mal-afamados
onde família de conceito não passava.
"Lugar de gentinha" - diziam, virando a cara.
De gente do pote d'água.
De gente de pé no chão.
Becos de mulher perdida.
Becos de mulheres da vida.
Renegadas, confinadas
na sombra triste do beco.
Quarto de porta e janela.
Prostituta anemiada,
solitária, hética, engalicada,
tossindo, escarrando sangue
na umidade suja do beco.

Becos mal-assombrados.
Becos de assombração...
Altas horas, mortas horas...
Capitão-mor - alma penada,
terror dos soldados, castigado nas armas.
Capitão-mor, alma penada,
num cavalo ferrado,
chispando fogo,
descendo e subindo o beco,
comandando o quadrado - feixe de varas...
Arrastando espada, tinindo esporas...

Mulher-dama. Mulheres da vida,
perdidas,
começavam em boas casas, depois,
baixavam para o beco.
queiram alegria. Faziam bailaricos.
- Baile Sifilítico - era ele assim chamado.
O delegado-chefe de Polícia - brabeza - 
dava em cima...
Mandava sem dó, na peia.
No dia seguinte, coitadas,
cabeça raspada à navalha,
obrigadas a capinar o Largo do Chafariz,
na frente da Cadeia.

Becos da minha terra...
Becos de assombração.
Românticos, pecaminosos...
Têm poesia e têm drama.
O drama da mulher da vida, antiga,
humilhada, malsinada.
Meretriz venérea,
desprezada, mesentérica, exangue.
Cabeça raspada à navalha, 
castigada a palmatória,
capinando o largo,
chorando. Golfando sangue.

(Último Ato)
Um irmão vicentino comparece.
Traz uma entrada grátis do São Pedro de Alcântara.
Uma passagem de terceira no grande coletivo
de São Vicente.
Uma estação permanente de repouso - no
aprazível São Miguel.
Cai o pano." Cora Coralina

2866. "As palavras, como as abelhas, têm mel e ferrão."

2867. "A gentileza é o doce que precisamos p/ aumentar a taxa de humanidade."

2868. "A aparência vê... a essência se sente."

2869. "É preciso fabricar os bons momentos, porque os ruins chegam sozinhos."

2870. "De nada vale a riqueza nos tolos, quando há pobreza no coração."

2871. "Não carrego certezas, só coragem."

2872. "Deixe para traz o que não te leva pra frente."

2873. "A mudança de um único hábito pode transformar toda uma vida."

2874. "Minha cidade
Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
umas das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.

Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.

Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados
e telhados
e paredes.

Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas
onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruinha pobre e suja.

Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam
a gente cansada e os pássaros vadios.

Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.

Eu sou a dureza desses morros,
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
Pastados.
Calcinados
e renascidos.
Minha vida,
meus sentidos,
minha estética,
todas as vibrações
de minha sensibilidade de mulher,
têm, aqui, suas raízes.

Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
eu sou Aninha." Cora Coralina 

2875. "Não se justifique. Os amigos não precisam e os inimigos não acreditam."

2876. "Sempre haverá outra chance, outro emprego, outra amizade, outro amor, mas nunca outra vida. Então, não desperdice seu tempo."

2877. "Temos dentro de nós, uma reserva insuspeita de força que surge quando a vida nos põe à prova." Isabel Allende

2878. "Se você quer chegar onde a maioria não chega, faça oque a maioria não faz." Bill Gates

2879. "Nada é pequeno no amor. Quem espera as grandes ocasiões p/ provar a sua ternura, não sabe amar." Exupéry

2880. "As boas ações são a melhor prece, por isso que os atos valem mais que as palavras." Allan Kardec

2881. "Concentre-se nas soluções e não nos problemas."

2882. "Nunca pare de aprender. A vida nunca para de ensinar."

2883. "Maturidade é viver em paz com aquilo que não se pode mudar."

2884. "A verdade dói, a mentira mata, mas a dúvida tortura."

2885. "Tudo é ousado p/ quem nada se atreve."

2886. "Primeiro ignoram-te, depois riem de ti, depois atacam-te e no fim tu vences."

2887. "Há pessoas elegantes e pessoas enfeitadas."

2888. "Eu gosto do impossível porque lá a concorrência é menor." Walt Disney

2889. "Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo." Malala Y.

2890. "Ler é crescer em silêncio."

2891. "Decisões tem consequências. Indecisões, mais ainda."

2892. "Nem todas as verdades são para todos os ouvidos." U. Eco

2893. "Todas as vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai de santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida - 
a vida mera das obscuras." Cora Coralina

2894. "Quando as raízes são profundas não há razão p/ temer o vento."

2895. "As palavras pouco valem se não são acompanhadas de ações."

2896. " Vintém de cobre (Freudiana)
Eu vestia um antigo mandrião
de uma saia velha de minha bisavó.
Eu vestia um timão feio
de pedaços, de restos de baeta.

Vintém de cobre:
ainda o vejo
ainda o sinto
ainda o tenho
na mão fechada.

Vintém de cobre:
dinheiro antigo.
Moeda escura,
recolhida, desusada.
Feia, triste, pesada.

Corenta. vintém. Derréis.
Dinheiro curto, escasso.
Parco. Parcimonioso
de gente pobre,
da minha terra,
da minha casa,
da minha infância.

Vintém de cobre:
Economia. Poupança.
A casa pobre.

Mandrião de saias velhas.
Timão de restos de baeta.
Colchas de retalhos desbotados.
Panos grosseiros, encardidos, remendados.
vida sedentária.
Velhos preconceitos.
Orgulho e grandeza do passado.

Pé-de-meia sempre vazio.
E o sonho de ajuntar.
Melhorar de vida, prosperar,
num esforço inútil e tardio.

Corenta, vintém, derréis...
Eu ajuntando.
Mudando de caixinha, mudando de lugar.
Diziam, caçoando, as meninas da escola:
"- Muda de lugar que ele aumenta..."
Eu acreditava.
Guardava cinquinho a cinquinho
na esperança irrealizada
de inteirar quinhentos réis.

Fui criança do tempo do cinquinho,
do tempo do vintém.
Do antigo mandrião
de saias velhas da vovó.
De cobertas de retalho,
de panos grosseiros encardidos,
remendados.
De velhos preconceitos
- orgulho e grandeza do passado.
Opulência. Posição social.
Sesmarias. Escravatura.
Caixas de lavrado.

Parentes emproados.
Brigadeiros. Comendadores,
visitando a Corte,
recebidos no Paço.
Decadência...
Tempos anacrônicos, superados.

fui menina do tempo do vintém.
Do timão de restos de baeta.
fiquei sempre no tempo do cinquinho.
no tempo dos adágios que os velhos
sentenciavam
enfáticos e solenes:
"- Quem nasce pra derréis não chega a vintém".
Pessimismo recalcando
aquele que pensava evoluir.

"Vintém poupado, vintém ganhado."
estatuto econômico. Mote gravado
no corpo de algumas emissões.
"Na pataca da miséria o diabo tem sempre um vintém."
Isto se dizia, quando moça pobre se perdia.
"Quem compra o extraordinário
vê-se obrigado a vender o necessário."
Doía... impressionava.
Era a Sabedoria que falava. 

E a gente sentia até uma lagrimazinha de remorso
no canto do olho.
E se via mesmo de trouxinha na cabeça,
andando de déu em déu,
perseguida dos credores.
A casinha penhorada.
Os trenzinhos dados à praça.
Tudo irrecuperado, perdido,
porque tinha comprado o extraordinário:
um vestido de chita cor-de-rosa
pintadinho de azul.

O tempo foi passando, foi levando:
minha bisavó, meu avô, minha mãe, minhas irmãs.
A velha casa.
Os velhos preconceitos
de cor, de classe, de família.
O tempo, velho tempo que passou,
nivelou muros e monturos.
Remarcou dentro de mim
a menina magricela, amarela,
inassimilada,
do tempo do cinquinho.

Eu tinha um timão de restos de baeta.
Eu tinha um mandrião de uma saia velha
de minha bisavó.

Vintém de cobre:
ainda o vejo
ainda o sinto
ainda o tenho
na mão fechada.
Moeda triste,
escura, pesada,
da minha infância,
da casa pobre." Cora Coralina

2897. "A cidadania é mais que uma conquista. Sozinhos ficamos livres, mas não podemos exercitar a nossa liberdade. Com o grupo, encontramos os meios de multiplicar as forças individuais, mediante a organização." Milton Santos

2898. "Poesia é voar fora da asa." Manoel de Barros

2899. "As palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade." Victor Hugo

2900. "O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia." Guimarães Rosa

2901. Salvar vidas e ajudar as pessoas faz parte de sua rotina tão agitada. Por conta disso, trago aqui o meu parabéns! Feliz Dia do Médico

2902. "Ser médico é ouvir com a alma e atender com o coração."

2903. "Ser médico é colocar em prática o amor ao próximo."

2904. "O Prato Azul-pombinho
Minha bisavó - que Deus a tenha em glória - 
sempre contava e recontava
em sentidas recordações
de outros tempos
a estória de saudade
daquele prato azul-pombinho.

Era uma estória minuciosa.
Comprida, detalhada.
Sentimental.
Puxada em suspiros saudosistas
e ais presentes.
E terminava, invariavelmente,
depois do caso esmiuçado:
"- Nem gosto de lembrar disso..."
É que a estória se prendia
aos tempos idos em que vivia
minha bisavó
que fizera deles seu presente e seu futuro.

Voltando ao prato azul-pombinho
que conheci quando menina
e que deixou em mim
lembrança imperecível. Era um prato sozinho,
último remanescente, sobrevivente,
sobra mesmo, de uma coleção,
de um aparelho antigo
de 92 peças.
Isto contava com emoção, minha bisavó,
que Deus haja.

Era um prato original,
muito grande, fora de tamanho,
um tanto oval.
Prato de centro, de antigas mesas senhoriais
de família numerosa.
De fastos de casamento e dias de batizado.

Pesado. Com duas asas por onde segurar.
Prato de bom-bocado e de mães-bentas.
De fios de ovos.
De receita dobrada
de grandes pudins,
recendendo a cravo,
nadando em calda.

Era, na verdade, um enlevo.
Tinha seus desenhos
em miniaturas delicadas:
Todo azul-forte,
em fundo claro
num meio-relevo.
Galhadas de árvores e flores,
estilizadas.
um templo enfeitado de lanternas.
Figuras rotundas de entremez.
Uma ilha. Um quiosque rendilhado.
Um braço de mar.
Um pagode e um palácio chinês.
Uma ponte.
Um barco com sua coberta de seda.
Pombos sobrevoando.

Minha bisavó
traduzia com sentimento sem igual,
a lenda oriental
estampada no fundo daquele prato.
Eu era toda ouvidos.
Ouvia com os olhos, com o nariz, com a boca,
com os sentidos,
aquela estória da Princesinha Lui,
lá da China - muito longe de Goiás -
que tinha fugido do palácio, um dia,
com um plebeu do seu agrado
e se refugiado num quiosque muito lindo
com aquele a quem queria,
enquanto o velho mandarim - seu pai -
concertava, com outro mandarim de nobre casta,
detalhes complicados e cerimoniosos
do seu casamento com um príncipe todo-poderoso,
chamado Li.

Então, o velho mandarim,
que aparecia também no prato,
de rabicho e de quimono,
com gestos de espavento e cercado de aparato,
decretou que os criados do palácio
incendiassem o quiosque
onde se encontravam os fugitivos namorados.

E lá estavam no fundo do prato,
- oh, encanto da minha meninice! - 
pintadinhos de azul,
uns atrás dos outros - atravessando a pont,
com seus chapeuzinhos de bateia
e suas japoninhas largas,
cinco miniaturas de chinês.
Cada qual com sua tocha acesa
- na pintura - 
para pôr fogo no quiosque
- da pintura.
Mas no largo do mar alto
balouçava um barco altivo
com sua coberta de prata,
levando longe o casal fugitivo.

Havia, como já disse,
pombos esvoaçando.
E um deles levava, numa argolinha do pé,
mensagem de boa ama,
dando aviso a sua princesa e dama,
da vingança do velho mandarim.

Os namorados então,
na calada da noite,
passaram sorrateiros para o barco,
driblando o velho, como se diz hoje.
E era aquele barco que balouçava
no mar alto da velha China,
no fundo do prato.

Eu era curiosa para saber o final da estória.
Mas o resto, por muito que pedisse,
não contava minha bisavó.
Dali para frente a estória era omissa.
Dizia ela - que o resto não estava no prato
nem constava do relato.
Do resto, ela não sabia.
E dava o ponto final recomendado.
"- Cuidado com esse prato!
É o último de 92."

Devo dizer - esclarecendo,
esses 92 não foram do meu tempo.
Explicava minha bisavó
que os outros - quebrados, sumidos,
talvez roubados - 
traziam outros recados, outras legendas,
prebendas de um tal Confúcio
e baladas de um vate
chamado Hipeng.

Do meu tempo só foi mesmo
aquele último
que, em raros dias de cerimônia
ou festas do Divino,
figurava na mesa em grande pompa,
carregado de doces secos, variados,
muito finos,
encimados por uma coroa
alvacenta e macia
de cocadas de fita.

Às vezes, ia de empréstimo
à casa da boa tia Nhorita.
E era certo no centro da mesa
de aniversário, com sua montanha
de empadas, bem tostadas.
No dia seguinte, voltava,
conduzido por um portador
que era sempre o Abdênago, preto de valor,
de alta e mútua confiança.

Voltava com muito-obrigados
e, melhor - cheinho
de doces e salgados.
Tornava a relíquia para o relicário
que no caso era um grande e velho armário,
alto e bem fechado.
- "Cuidado com o prato azul-pombinho" - 
dizia minha bisavó,
cada vez que o punha de lado.

Um dia, por azar,
sem se saber, sem se esperar,
artes do salta-caminho,
partes do capeta,
fora de seu lugar, apareceu quebrado,
feito em pedaços - sim senhor -
o prato azul-pombinho.

Foi um espanto. Um torvelinho.
Exclamações. histeria coletiva.
Um deus nos acuda. Um rebuliço.
Quem foi, quem não foi?...

O pessoal da casa se assanhava.
Cada qual jurava por si.
Achava seus bons álibis.
Punia pelos outros.
Se defendia com energia.
Minha bisavó teve "aquela coisa".
(Ela sempre tinha "aquela coisa" em casos tais.)
Sobreveio o flato.
Arrotando alto, por fim, até chorou...

Eu (emocionada), vendo o pranto de minha bisavó,
lembrando só
da princesinha Lui - 
que já tinha passado a viver no meu inconsciente
como ser presente,
comecei a chorar
- que chorona sempre fui.

Foi o bastante para ser apontada e acusada
de ter quebrado o prato.
Chorei mais alto, na maior tristeza,
comprometendo qualquer tentativa de defesa.
De nada valeu minha fraca negativa.
Fez-se o levantamento de minha vida pregressa 
de menina
e a revisão de uns tantos processos arquivados.

Tinha já quebrado - em tempos alternados,
três pratos, uma compoteira de estimação,
uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.

Meus antecedentes, até,
não eram muito bons.
Com relação a coisas quebradas
nada me abonava.
E o processo se fez, pois, à revelia da ré,
e com esta agravante:
tinha colado no meu ser magricela, de menina,
vários vocativos
adesivos, pejorativos:
inzoneira, buliçosa e malina.

Por indução e conclusão,
era eu mesma que tinha quebrado o prato azul-pombinho.

Reuniu-se o conselho de família
e veio a condenação à moda do tempo:
uma boa tunda de chineladas.

Aí ponderou minha bisavó
umas tantas atenuantes a meu favor.
E o castigo foi comutado
para outro, bem lembrado, que melhor servisse a todos
de escarmento e de lição:
trazer no pescoço por tempo indeterminado,
amarrado de um cordão,
um caco do prato quebrado.

O dito, melhor feito.
Logo se torceu no fuso
um cordão de novelão.
Encerrado foi. Amarrou-se a ele um caco, de bom jeito,
em forma de meia-lua.
E a modo de colar, foi posto em seu lugar,
isto é, no meu pescoço.
Ainda mais
agravada a penalidade:
proibição de chegar na porta da rua.
Era assim, antigamente.

Dizia-se aquele, um castigo atinente,
de ótima procedência. Boa coerência.
Exemplar e de alta moral.

Chorei sozinha minhas mágoas de criança.
Depois, me acostumei com aquilo.
No fim, até brincava com o caco pendurado.
E foi assim que guardei
no armarinho da memória, bem guardado,
e posso contar aos meus leitores,
direitinho,
a estória, tão singela,
do prato azul-pombinho." Cora Coralina

2905. "A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras." Aristóteles

2906. "Rio Vermelho
Longe do Rio Vermelho.
Fora da Serra Dourada.
Distante desta cidade,
não sou nada, minha gente.

Sem rebouço, falo sim.
Publico para quem quiser.
Arrogante digo a todos.
Sou Paranaíba pra cá.
e isto chega pra mim.

Rio Vermelho das janelas da casa velha da Ponte...
Rio que se afunda debaixo das pontes.
Que se reparte nas pedras.
Que se alarga nos remansos.
Esteira de lambaris.
Peixe cascudo nas locas.

Rio, vidraça do céu.
Das nuvens e das estrelas.
Tira retrato da Lua.
Da Lua quarto-crescente
que mora detrás do morro.
Lua que veste a cidade de branco
e tece rendado de marafunda
na sombra das cajazeiras.

Rio de águas velhas.
Roladas das enxurradas.
Crescidas das grandes chuvas.
Chovendo nas cabeceiras.
rio do princípio do mundo.
Rio da contagem das eras.

Rio - mestre de Química.
Na retorta das corredeiras,
corrige canos, esgotos, bueiros,
das casas, das ruas, dos becos
da minha terra.

Rio, santo milagroso.
Padroeiro que guarda e zela
a saúde da minha gente,
da minha antiga cidade largada.
Rio de lavadeiras lavando roupa.
De meninos lavando o corpo.
De potes se enchendo d'água.
E quem já ficou doente da água do rio?
Quem já teve ferida braba, febre malina,
pereba, sarna ou coceira?

Rio, meu pobre Jó...
Cumprindo sua dura sina.
Raspando sua lazeira
nos cacos dos seus monturos.
rio, Jó que se alimpa,
pela graça de Deus, Virgem Santa Maria,
nas cheias de suas enchentes
que carregam seus monturos.

Ponte da Lapa da minha infância...
Da escola da Mestra Silvina,
do tempo em que eu era Aninha...

Ponte do Carmo, querida,
dos namorados de longe.
Por onde passava enterro,
dos anjinhos de Goiás,
que iam pro cemitério,
pintadinhos de carmim.
Caixãozinho descoberto.
E a música tocando atrás
A Valsa da Despedida.

Ponte nova do Mercado
- foi pinguela do Antônio Manuel.
banheiro da meninada.
Ponte do Padre pio dos potes d'água.
Carioca de nós todos.
Pinguelona dos destemidos,
contando a estória de um sino.

Sino grande, imprensado,
nas locas da cachoeira.
Sino da Igreja da Lapa,
que rodou na grande enchente
tocando pro rio abaixo.
Até que parou imprensado
nas pedras da Pinguelona.

Gente que passa ali perto
conta estória do sino:
Inda toca à meia-noite
quando a cidade se aquieta,
e as águas ficam dormindo.

Tange, pedindo uma graça:
Que algum cristão caridoso,
o salve daquele poço,
o tire debaixo d'água.
Pois seu destino de sino
é no alto de uma torre
abençoando a cidade.
Dando aviso para o povo
- louvar a Deus poderoso.

Poço da Mandobeira...
Poço do Bispo...
Poço da Carioca...
Sombras de velhos banhistas dos velhos tempos.
Sabão do Reino no bolso.
Toalha passada ao ombro.
Cigarro de palha no bico.
A vitamina do banho.
Banho da Carioca.
Águas vitaminadas...

Rio Vermelho - meu rio.
Rio que atravessei um dia
(Altas horas. Mortas horas.)
há cem anos...
Em busca do meu destino.

Da janela da casa velha
todo dia, de manhã,
tomo a bênção do rio:
- "Rio Vermelho, meu avozinho,
dá sua bença pra mim..." Cora Coralina

2907. "Escolha quem te olha por dentro. O corpo tem prazo de validade, a alma não."

2908. "Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia." Liev Tolstói

2909. "Existir é uma maneira de resistir, coexistir, transistir." Cora Coralina

2910. "Não tendo o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como a alguém que vive em estado de graça com a poesia..." Carlos Drummond de Andrade

2911. "As coisas boas vêm quando estamos distraídos."

2912. "Ressalva
Este livro foi escrito
por uma mulher
que no tarde da Vida
recria e poetiza sua própria
vida.

Este livro
foi escrito por uma mulher
que fez a escalada da 
Montanha da Vida
removendo pedras
e plantando flores.

Este livro:
Versos... Não.
Poesia... Não.
Um modo diferente de contar velhas estórias." Cora Coralina

2913. "Sua história é o que você tem, o que sempre terá. É algo para se orgulhar." Michelle Obama

2914."Basta-me um pequeno gesto, feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve..." Cecília Meireles

2915. "E fui tomar satisfação a meu pai sobre esses assuntos do céu: 'O povo diz que o céu é lá em cima e o inferno é lá embaixo. Mas se a Terra é redonda e tem céu em toda a volta, onde fica o inferno?' Meu pai, meio agnóstico, meio crente, me deu uma palmadinha carinhosa e se saiu: 'O inferno é aqui mesmo. Vá brincar!'" Rachel de Queiroz

2916. "Do beco da Vila Rica
No beco da Vila Rica
tem sempre uma galinha morta.
Preta, amarela, pintada ou carijó.
Que importa?
Tem sempre uma galinha morta, de verdade.
Espetacular, fedorenta.
Apodrecendo ao deus-dará.

 No beco da Vila Rica,
ontem, hoje, amanhã, 
no século que vem,
no milênio que vai chegar,
terá sempre uma galinha morta, de verdade.
Escandalosa, malcheirosa.
Às vezes, subsidiariamente, também tem
- um gato morto.

No beco da Vila Rica tem
velhos monturos,
coletivos, consolidados,
onde crescem boninas perfumadas.

Beco da Vila Rica...
Baliza da cidade,
do tempo do ouro.
Da era dos 'polistas',
de botas, trabuco, gibão de couro.

Dos escravos de sunga de tear, camisa de baeta,
correndo pra o jeguedê e o batuque.

A estória da Vila Rica
é a estória da cidade mal contada,
em regras mal traçadas.
Vem do século dezoito,
vai para o ano dois mil.
Vila Rica não é sonho, inventação,
imaginária, retórica, abstrata, convencional.

É real, positiva, concreta e simbólica.
Involuída, estática.
Conservada, conservadora.
E catinguda.

Velhos portões fechados.
Muros sem regra, sem prumo nem aprumo.
(Reentra, salienta, cai, não cai,
entorta, endireita,
embarriga, reboja, corcoveia...
Cai não.
Tem sapatas de pedras garantindo.)

Vivem perrengando
de velhas velhices crônicas.
Pertencem a velhas donas
que não se esquecem de os retalhar
de vez em quando.
E esconjuram quando se fala
em vender o fundo do quintal,
fazer casa nova, melhorar.
E quando as velhas donas morrem centenárias
os descendentes também já são velhinhos. 
Herdeiros da tradição
- muros retelhados. portões fechados.

Na velhice dos muros de Goiás
o tempo planta avencas.

Monturo:
Espólio da economia da cidade.
Badulaques:
Sapatos velhos. Velhas bacias.
Velhos potes, panelas, balaios, gamelas,
e outras furadas serventias
vêm dar ali.

Não há nada que dure mais do que um sapato velho
jogado fora.
Fica sempre carcomido,
ressecado, embodocado,
saliente por cima dos monturos.
Quanto tempo!
Que de chuva, que de sol,
que de esforço, constante, invisível,
material, atuante,
silencioso, dia e noite,
precisará de um calçado, no lixo,
para se decompor absolutamente, 
se desintegrar quimicamente
em transformações de humo criador?...

Às vezes, um vadio,
malvado ou caridoso,
põe fogo no monturo.
Fogo vagaroso, rastejante.
Marcado pela fumaceira conhecida.
Fumaça de monturo:
Agressiva. Ardida.
Cheiro de alergia.
Nervosia, dos de cabeça.
Enjoo de estômago.
Monturo:
tem coisa impossível de queimar,
vai ardendo devagar,
no rasto da cinza, na mortalha da fumaça.
Monturo...
Faz lembrar a Bíblia:
Jó, raspando suas úlceras.
Jó, ouvindo a exortação dos amigos.
Jó, clamando e reclamando do seu Deus.
As mulheres de Jó,
as filhas de Jó,
gandaiam coisinhas, pobrezas,
nos monturos do beco da Vila Rica.

Eu era menina pobrezinha, 
como tantas do seu tempo.
Me enfeitava de colares,
de grinaldas,
de pulseiras, 
das boninas dos monturos.

Vila Rica da minha infância,
do fundo dos quintais...
Sentinelas imutáveis dos becos, os portões.
Rígidos. Velhíssimos. Carunchados.
Trancados à chave.
Escorados por dentro.
Chavões enormes (turistas morrem por elas).
Fechaduras de broca, pesadas, quadradas. 
Lingueta desconforme, desusada.
Portões que se abriam,
antigamente,
em tardes de folga,
com licença dos mais velhos.

Aonde a gente ia - combinada com a vizinha,
conversar, espairecer... passar a tarde...
Tarde divertida, de primeiro, em Goiás,
passada no beco da Vila Rica,
- a dos monturos bíblicos.
Dos portões fechados.
De mosquitos mil. Muriçocas. Borrachudos.
E o lixo pobre da cidade,
extravasando dos quintais.
e aquela cheiração ardida.
E a ervinha anônima,
sempre a mesma,
estendendo seu tapete
por toda a Vila Rica.
Coisinha rasteirinha, sem valia.
Pisada, cativa, maltratada.
Vigorosa.
Casco de burro de lenha.
Pisadas de quem sobe e desce.
Daninheza de menino vadio
nunca dão atraso a fedegoso,
federação, manjiroba, caruru-de-espinho,
guanxuma, são-caetano.
Resistência vegetal... Plantas que vieram donde?
Do princípio de todos os princípios.

Nascem à toa. Vingam conviventes.
Enfloram, sem amparo nem reparo de ninguém.
E só morrem depois de cumprida a obrigação:
amadurecer... sementear,
garantir sobrevivência.
E flores... migalhas de pétalas, de cores.
Amarelas, brancas, roxas, solferinas.
Umas tais de andaca... boninas...
Flor de brinquedo de menina antiga.
Flor de beco, flor de pouco caso.
Vagabundas, desprezadas.

Becos da minha terra...
Válvulas coronárias da minha velha cidade.

Além do mais, Vila Rica tem um cano horroroso.
Começa no começo.
Abre ali sua bocarra de lobo
e vai até o Rio Vermelho.
Coitado do Rio Vermelho!..." Cora Coralina

2917. " Poesia, meu passarinho,
bordada em tico-tico,
ponto de asas abertas,
estrelas de penas claras,
tapete de rendendê,
onde as flores mais singelas,
rosas brancas, amarelas,
teci, pensando em você." Sylvia Orthof

2918. "Toda a poesia - e a canção é uma poesia ajudada - reflete o que a alma não tem. Por isso a canção dos povos tristes é alegre e a canção dos povos alegres é triste." Fernando Pessoa 

2919. "Oração do Milho
(Introdução ao Poema do Milho)
Senhor, nada valho, 
Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O justo não me consagrou Pão de vida, nem 
lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial
dos que trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.

Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que 
começam a vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho." Cora Coralina

2920. "O educador se eterniza em cada ser que educa." Paulo Freire

2921."A poesia é uma pulga
A poesia é uma pulga,
coça, coça. me chateia,
entrou por dentro da meia,
saiu por fora da orelha,
faz zumbido de abelha, 
mexe, mexe, não se cansa,
nas palavras se balança,
fala, fala, não se cala
A poesia é uma pulga,
de pular não tem receio,
adora pular na escola, só na hora do recreio!" Sylvia orthof

2022. "- Quem está nas trincheiras ao teu lado?
- E isso importa?
- Mais do que a própria guerra." Ernest Hemingway

2023. "Você nunca vai ser criticado por alguém que está fazendo mais que você. Você sempre vai ser criticado por alguém que está fazendo menos. Se lembre disso." Denzel Washington 

2024. "Chique mesmo é honrar a sua palavra, ser grato a quem o ajuda, correto com quem você se relaciona e honesto nos seus negócios."

2025. "O bem que você faz hoje pode ser esquecido amanhã. Faça o bem assim mesmo, veja que ao final das contas, é tudo entre você e Deus! Nunca foi entre você e os outros." Madre Teresa de Calcutá

2026."A velhota cambalhota
Era uma velha velhota
chamada Dona Cambalhota
ela morava numa casa
no alto de Minas Gerais

Numa estrada de ladeira que subia uf! uf!
até não se aguentar mais.
Ali bem perto da Lua no alto daquela serra,
Cambalhota dava um salto cambalhotando pro alto.

A comadre mariquinha que era sua vizinha
ficava escandalizada.
- Ô comadre cambalhota, tenha modos de velhinha,
acabei de ver a renda da perna de uma calcinha.

Cambalhota não tem jeito,
é uma velha engraçada,
mineira, bem educada,
reza o terço, vai a missa,
usa um coque, é quase freira,

Mas adora brincadeira de ser doidinha e velhota,
anda dando cambalhota..." Sylvia orthof 

2027. "