2 de out. de 2013

UM LAGO CHAMADO GUAÍBA (Carlos Alfredo Azevedo Oliveira*)


A impropriedade das designações de acidentes geográficos não é muito rara na cartografia destinada ao grande público. Tais impropriedades são devidas, geralmente, ao grande respeito pela tradição e pela linguagem habitual do povo. O rigorismo científico talvez distanciasse este da consulta ou da compreensão dos mapas. Assim, vemos nos grandes atlas universais notórios lagos ainda designados por mares, como o Mar Morto, o Mar Cáspio, o Mar de Aral e o Mar da Galileia, apenas este entre parêntesis, corretamente designado por Lago Tiberíades ou de Genesaré.

Outras vezes, como acontece em nosso território, denominações postas apressadamente em roteiros e cartas pelos primeiros exploradores, que não verificaram com a devida exatidão o acidente geográfico, são mantidas pela tradição ou pelo hábito. É o caso da Baía de Guanabara que, inicialmente, foi tomada como desembocadura de um rio, o Rio de Janeiro. Desta maneira, tanto a cidade como o Estado, deveu o seu nome a um rio que não existe.


O mesmo equívoco ocorreu com o nosso Estado, que também deveu seu nome a um rio inexistente. Nos mapas primitivos da região, os cartógrafos esboçavam um Rio Grande desde o canal que conserva este nome, e que é o emissário da Laguna dos Patos no Atlântico, até as nascentes do Jacuí.

Na medida em que se foi tornando mais conhecido o Continente de São Pedro, as designações de seus acidentes geográficos foram sendo postas de forma mais adequada, com exceção do Guaíba - habitualmente chamado de rio ou de estuário. Entretanto, se examinarmos detidamente o significado desses termos, veremos que o Guaíba não se enquadra neste tipo de fenômeno da hidrografia continental.

Estuário é foz, é desembocadura de rio no mar, caracterizada por uma abertura larga e relativamente profunda. O ambiente estuarino é desfavorável à acumulação de sedimentos, em virtude das correntes de maré e das correntes litorâneas. Portanto não há ilhas neste tipo de foz.

O termo estuário deriva do latim estus, que significa maré.

As condições ecológicas de um estuário se caracterizam pela instabilidade e troca frequente de seu teor de salinidade, no sentido da desembocadura no mar e o ritmo de curta frequência em consequência da ação da maré. A salgadura ambiente dá lugar a fenômenos de estratificação, com uma camada mais profunda de maior salinidade, subjacente a outra superficial - "mais doce" - e dupla circulação em camadas superpostas ou, ainda, com circulação vertical chamada "celular".


Toda a flora e fauna estuariais são propícias a formas de organismos que toleram variações amplas no que respeita ao teor em sais. Esses organismos vão-se sucedendo conforme a escala de salinidade e sua capacidade maior ou menor de tolerância. Entre os dois extremos, seres propriamente de água doce e seres marinhos, acham-se todos os intermediários. A troca de salinidade, traço básico de um sistema estuarino, tem motivado a criação de escalas por parte dos cientistas.


A DESIGNAÇÃO DE LAGOA

Se examinarmos a documentação histórica e cartográfica como o fez Walter Spalding, veremos que as denominações LAGOA DOS PATOS, GUAÍBA e BARRA DO RIO GRANDE são relativamente recentes. A cartografia dos séculos XVII e XVIII até princípios do XIX, mencionava esses acidentes geográficos com uma só denominação: RIO GRANDE.

O Guaíba, no século XVIII, talvez desde 1732, era conhecido como LAGOA DE VIAMÃO, passando a denominar-se indistintamente, "Guaíba" ou "Lagoa de Viamão" até depois de 1750.


Alguém poderia pensar na restauração da velha designação de lagoa ao Guaíba, em face da sua escassa profundidade. Entretanto, essa designação não é adequada ao Guaíba, em virtude de, na terminologia científica, o termo lagoa ser reservado às antigas lagunas que perderam a comunicação com o mar, em face da acumulação de areias ou outros sedimentos, nos litorais de emersão. A existência do Guaíba é anterior à formação da planície litorânea do Rio Grande do Sul. Este fato está bem comprovado pelas pesquisas geológicas publicadas recentemente. É preciso não confundir o sentido da palavra lagoa atribuído pelo vocabulário comum, com o da linguagem científica da Geografia. Este prende-se à origem geomorfológica do acidente geográfico. A existência do Guaíba, como antigo estuário e não laguna, pois o rio Jacuí desemboca no oceano que então envolvia o maciço granítico de Porto Alegre - é anterior à formação da planície litorânea.




O LAGO GUAÍBA

 O Guaíba é mencionado como LAGO por Herrmann von Ihering (1885), J. Tupi Caldas (1938), Balduino Rambo (1942) e Jorge Porto (1951), além de outros. Esses autores, no entanto, não explicaram em suas obras, porque rejeitaram as designações anteriores. Talvez por não desejarem ocupar muito espaço com o óbvio.




Para muitos leitores pode parecer estranha essa designação, principalmente levando-se em conta a incompleta definição dos dicionários comuns, que considera “lago uma porção d’água cercada por terra por todos os lados”. Esta explicação própria também dos compêndios escolares do ensino fundamental, sugere apenas a imagem de lagos sem escoamento por meio de emissários ou ligação com outros lagos.

Mais correto é o conceito: extensão d’água doce ou salgada, ocupando depressão topográfica e que pode ter ou não escoamento externo. Aos rios que lhe são tributários dá-se o nome de afluentes e aos que escoam o excedente de suas águas, o de emissários.


Lagos são acumulações de águas doces ou salgadas formando, às vezes, o nível de base de uma vertente ou representando frequentemente um degrau no perfil de um rio e um alargamento de seu campo de inundação.

Os lagos são fortemente solidários com a hidrografia fluvial à qual contribuem para moderar quando são um elemento de seu leito maior.



Há quem se surpreenda por ser um lago apenas uma parte mais alargada do rio, onde a corrente é menos rápida. Neste caso, as águas lacustres não são mais do que as mesmas águas fluviais, seja em situação de trânsito, como no caso do Lago de Constança, na Suíça, em que o Rio Reno é seu principal afluente e, posteriormente, seu emissário; ou em fim de etapa, como o Guaíba, alimentado pelos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí, que por circunstâncias morfológicas especiais não podem chegar ao oceano e desembocam numa depressão topográfica relativa, formando um lago.

Mapa das localidades de amostragem no Delta do Jacuí, Lago Guaíba e Laguna dos Patos, Rio Grande do Sul, Brasil: (1) Ilha do Chico Inglês, em frente ao porto de Porto Alegre, localidade do primeiro registro deLimnoperna fortunei em 1998; (2) localidades do segundo registro, em 1999: (2a) canal da COPESUL, município de Triunfo, (2b) Vila de Itapuã, camping das Pombas e Praia da Pedreira, município de Viamão; (3) Arambaré, localidade do terceiro registro, em 2000; (4) desembocadura do Rio São Lourenço na Laguna dos Patos, localidade do quarto registro, em 2001.









Em fim de etapa, tal como este lago chamado Guaíba, são também certos lagos de terra firme do Estado do Amazonas, tais como o rio Tefé, que se torna lago Tefé, e o Piorini. São as mesmas águas fluviais representadas pelos diques de aluviões.

Muitos lagos de terra firme, na Amazônia, formam ângulos quase retos ou “joelhos de fratura”, conforme assinala Teixeira Guerra, ocupando linhas de falhas ou vales tectônicos posteriores e alongados e aprofundados pela erosão e finalmente invadidos e afogados pela água do rio Amazonas. Além dos citados, há ainda outros: o Lago Grande de Macapuru, o Anamã, o Badajós, o Caiambé, todos muito bem representados e visíveis na Carta do Brasil ao Milionésimo, Folha de Manaus, elaborada pelo IBGE.      

* Professor do Departamento de Geociências da UFRGS.

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